domenica 14 febbraio 2010

TANGO E SAMBA COMO MODERNIDADES PRIMITIVAS

DA FOLHA DE SAO PAULO

Cultura do crioulo doido
Dois estudos discutem as relações entre literatura e gêneros musicais como tango e samba

LIVIO TRAGTENBERG
Por quais motivos a malandragem permanece como um traço distintivo de nossa cultura?", pergunta Giovanna Dealtry, autora de "No Fio da Navalha - Visões da Malandragem na Literatura e no Samba".
Em seu estudo, ela descortina fatos e personagens da cultura brasileira e, mais especificamente, do Rio de Janeiro do início do século 20, como se fosse uma mascarada, vista como um jogo de esconde-esconde social.
Mostra como o samba, de símbolo de malandragem -negativo-, se torna um de nossos "símbolos nacionais".
Ao buscar a genealogia do compositor de samba carioca, o livro nos faz mergulhar na própria construção de suas estratégias de identidade mutante, em que ser "malandro" é uma ferramenta de sobrevivência.
Eram compositores que não queriam ser confundidos com malandros ligados à marginalidade, que queriam reconhecimento e espaço social, mas que ao mesmo tempo se serviam de uma certa mitologia desse universo como distintivo de promoção social.

O negro e a cidade
A famosa polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista é um dos exemplos aparentes desse processo de tensão no estabelecimento do espaço social do sambista.
O compositor que passava a ganhar a vida com o samba, e que tinha em Sinhô um de seus exemplos mais conhecidos, transitava entre dois mundos na sociedade carioca, modulando sua atuação segundo a situação. Isso possibilitou que atravessasse fendas de classe, estabelecendo novas pontes e possibilidades.
Em "No Fio da Navalha" fica claro como o índio, símbolo de preguiça e desajuste ao mundo civilizado, à época vai sendo afastado do imaginário de um Brasil positivista. Já em 1888, havia a "proibição das fantasias de índios durante o Carnaval da belle époque".
O Estado precisava transformar o negro liberto em operário padrão. Nesse contexto, uma série de perseguições contra a sua cultura se operou, como a proibição da prática da capoeira. Giovanna Dealtry nos faz percorrer os meandros desse processo de transformação e assimilação do negro no contexto da cidade.
Estudando a literatura carioca do maldito Antonio Fraga em "Desabrigo", de cujas personagens as gírias "espelham os sambistas da Cidade Nova", e recorrendo a Luiz Edmundo e João do Rio, cronistas essenciais do Rio de Janeiro dos "tempos dos vice-reis" e do início do século 20, tem-se uma dimensão retrospectiva das negociações sociais que se operaram e que hoje ocorrem, só que na ponta do fuzil.
Com fluidez e sem afetação acadêmica, "No Fio da Navalha" acompanha, em paralelo, as dimensões mais mundanas do universo do Rio de Janeiro, ao lado de uma reflexão mais profunda num âmbito socioantropológico.

Modernidade primitiva
Já "Modernidades Primitivas - Tango, Samba e Nação", da argentina Florencia Garramuño, busca, por meio do estudo do tango e do samba, investigar o "paradoxo de modernidade primitiva" e os sentidos culturais que dele emergem.
Sentidos culturais cambiantes na formação dos conceitos fundadores do que se compõe uma identidade nacional levam a autora a tecer paralelos entre a trajetória do tango na Argentina e a do samba por aqui.
Trata também de suas relações com a literatura de vanguarda do início do século 20. À raiz negra, ora exaltada (por Jorge Luis Borges, por exemplo) e ora contestada, num processo de aburguesamento e domesticação do tango -à maneira do samba-, "acompanham e registram, como fiéis termômetros, a civilização e a modernização das culturas argentina e brasileira", segundo Garramuño.
Discussões similares sobre a genealogia dos estilos, entre outras, mostram trajetórias próximas no período do estabelecimento do tango e do samba em suas respectivas culturas urbanas.
O maior mérito do livro e sua originalidade é apresentar os elementos culturais e as negociações sociais envolvidas sem perder de vista especificidades, buscando uma verdade totalizadora e teórica.

Tecidos sociais
Se muitos elementos os aproximam, como suas origens, há outros tantos que os distinguem. Tangueiros e sambistas transitavam entre os tecidos sociais, e nesse trânsito traficavam símbolos, gírias, hábitos e comportamentos próprios.
Seguindo a máxima do Velho Guerreiro, Chacrinha, não vinham para explicar, mas "para confundir".
LIVIO TRAGTENBERG é compositor e criador da Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo.

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NO FIO DA NAVALHA - VISÕES DA MALANDRAGEM NA LITERATURA E NO SAMBA
Autor: Giovanna Dealtry
Editora: Casa da Palavra (tel. 0/ xx/ 21/ 2222-3167)
Quanto: R$ 32 (208 págs.)
MODERNIDADES PRIMITIVAS - TANGO, SAMBA E NAÇÃO
Autor: Florencia Garramuño
Tradução: Rômulo Monte Alto
Editora: UFMG (tel. 0/ xx/31/ 3409-4650)
Quanto: R$ 43 (224 págs.)