domenica 11 aprile 2010

NARRATIVA E POP

DA UOL
"Sobrescritos" consegue unir crítica literária, ótimo exercício narrativo e mundo pop
MARTA BARBOSA
Em "Sobrescritos", o blogueiro, escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues (f) consegue unir crítica literária, ótimo exercício narrativo e mundo pop

LEIA TRECHO DA OBRA DE SÉRGIO RODRIGUESAs prateleiras das livrarias confirmam uma tendência editorial de conexão (quando não de puro reaproveitamento mesmo) da internet com os livros. São exercícios interessantes, mas nem todos funcionam. “Sobrescritos - 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos”, do blogueiro/escritor/crítico literário Sérgio Rodrigues (lançamento da editora Arquipélago) é um raro exemplo de nexo. Os contos curtos do autor, que já são sucesso na rede há muito tempo, fazem ainda mais sentido impressos.

O "Todoprosa", de Sérgio, está entre os blogs literários mais lidos da rede. Ali, o autor publica curiosidades etimológicas, críticas de livros, impressões literárias e suas criações. Todos os 40 textos de “Sobrescritos” já estiveram na rede, mas no papel (e isso até o mais nerd dos leitores poderá confirmar) eles ganham em força.

O que une as histórias é a própria literatura - e todas as ironias que a cercam, às vezes de maneira desconcertante, outras com uma graça rasgada. Não é preciso fazer parte do mundo acadêmico para dar boas risadas com a veloz descrição do caso entre uma blogueira e um estruturalista com “reputação longamente esquecida de analista rigoroso de João Cabral, Guimarães Rosa e Osman Lins”.

Pop x acadêmico
Além do ritmo da narrativa, ponto forte do escritor, merece atenção o trabalho de aproximação do mundo pop com o sisudo mundo acadêmico literário. O encontro entre a blogueira e o estruturalista, por exemplo, tem como trilha sonora “Eduardo e Mônica”, de Renato Russo, tocado nas alturas nos corredores de um shopping.

Todos os textos têm ironia, têm humor e têm uma bem dosada crítica à crítica. Em “Oficina de Ficção”, um casal se encanta numa aula para escritores, enquanto o personagem faz a leitura de um diálogo “habilmente plagiado do Sabino”.

Um dos melhores do conjunto, “Razões” enumera motivos para um escritor escrever. A velha pergunta chavão, respondida à exaustão por autores ao longo da história e tida como a “mais tolinha do manual”, ganha respostas escrachadas, num ótimo retorno ao modelo estereotipado da questão. Tem o quarentão “provavelmente brocha” que diz escrever por não saber tocar saxofone (resposta clássica, diga-se), o outro que diz escrever para amansar o monstro que carrega dentro de si e a paulistana modernosa que não tem “the slightest fucking idea”.

Outro curtinho que é diversão garantida é “A Mulher de Botero”. João Pontes, o escritor, se vê perturbado com a imagem da mulher de Botero na cobertura do outro lado da rua, bem à frente de sua mesa de trabalho. A visão vira obsessão e culmina com a mais paranóica das paranóias de escritor: a de perder o controle da história.

O mais legal é que “Sobrescritos” é divertido, mas não rasteiro. É um livro de crítica literária, não há dúvida, mas também de um agradável exercício narrativo, com tramas bem desenvolvidas, dentro de um parâmetro de concisão. O mérito do autor é conseguir unir seu trabalho como crítico e como escritor nas mesmas linhas, sem a arrogância do primeiro, nem a prepotência do segundo. Tudo muito leve, quase para não se levar a sério.

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SOBRESCRITOS - 40 HISTÓRIAS DE ESCRITORES, EXCRETORES E OUTROS INSENSATOS
Autor: Sérgio RodriguesEditora: ArquipélagoPáginas: 148Preço: R$ 25

Leia a seguir trecho de "Sobrescritos - 40 Histórias de Escritores, Excretores e Outros Insensatos", obra de Sérgio Rodrigues publicada pela editora Arquipélago (148 págs., R$ 25):

"A MULHER DE BOTERO

João Pontes, o escritor, olhou um dia pela janela ao lado de sua mesa de trabalho, no nono andar de um edifício na Gávea, e viu na cobertura do outro lado da rua, bem à sua frente, entre vasos de planta, uma mulher de Botero. A visão o desagradou, como o desagradavam as mulheres de Botero. Mas logo João a decompôs numa ilusão de folhas amarelas e vasos escuros, tela nublada pela lâmina de vidro que tudo recobria, com seus reflexos e sombras.

Terminou por achar graça: a assombração era um incrível trompe-l’oeil produzido pelo acaso. Concentrou-se então no trabalho por mais meia hora – escrevia seu quinto romance, uma ficção histórica sobre o bando de Lampião – e, mal deixou o olho escapar pela janela atrás de um nome próprio, a palavra cardo, o adjetivo ressequido, lá estava a mulher de Botero outra vez.

Era uma visão súbita, perfeita, de uma nitidez que dava náusea. E de novo, o que era estranho, João a recebeu com a surpresa de um tapa na cara. Não conseguia estar preparado para a mulher de Botero. Aquilo se repetiu por dias: olhar pela janela, tomar um susto ao ver a mulher de Botero a secar seu progresso penoso do outro lado da rua, como se dissesse:

“Escritor? Pois sim…”, e perder mais uma vez o fio da meada de Virgulino, a pegada entre clássica e pop que buscava para o faroeste brasileiro que tinha na imaginação. Aquela mulher de Botero era ainda mais desagradável do que a média das mulheres de Botero: xale preto, as mãos dois peixes inchados no colo preto, sorrisinho estúpido, o olhar entre frio e lunático – um olhar alienígena, com a hostilidade suprema da indiferença. Aquela coisa toda fofa, teratológica em seu balofismo. Misógina. E sempre chegando de tocaia. Duas semanas depois João parou de escrever.

O que o levou a tomar tal decisão foi o orgulho de autor: tinha perdido o controle da história. Às vezes achava agradável a sensação de estar à deriva em sua própria narrativa, ser levado por ela, mas só quando a direção era mais ou menos a que tinha planejado. E seus planos passavam longe do lugar onde estava agora. A coisa ia descambando de vontade própria de Quixadá para Querétaro: cada cena que lhe saía dos dedos, empurrada pela anterior e já puxando a seguinte, era de um realismo-socialista-quase-fantástico latino-americano de décima terceira categoria. Maria Bonita ficou enorme de gorda, os cangaceiros desenvolveram músculos de peão de Portinari, a luz amarela que tudo banhava era artificiosa, como se fosse de estúdio. Lampião, vanguarda do campesinato, organizava as massas e fundava sovietes. Parou.
Não tinha dúvida de que a culpa era da mulher de Botero.

Pensou em atravessar a rua, descobrir o número do apartamento em que ela morava e interfonar. Soaria como um louco, mas, de certa forma, não era pedir tanto: será que a senhora se incomodaria de redecorar a cobertura só um pouquinho, um nada? Um vaso deslocado alguns centímetros seria o bastante para me restituir a felicidade. Tímido, não atravessou a rua. Dizer o quê, sem soar ridículo: tem o fantasma de uma mulher gorda no seu jardim me impedindo de trabalhar?

Meses depois, já quase esquecido da mulher de Botero, tão acostumado estava a vê-la diariamente em seu habitat sombreado, reparou com uma vertigem que ela se fora. Na cobertura do outro lado da rua havia apenas vasos, folhagens – os centímetros de que precisava chegavam por obra do mesmo acaso que tinha engendrado o virago. Seu primeiro impulso foi sorrir e pensar que voltaria à história engavetada de Lampião. Mas no instante seguinte ficou sério, sério e abatido, porque soube com clareza que voltaria à história de Lampião apenas para abandoná-la definitivamente logo depois – abandoná-la com tal fúria que só lhe restaria deletar qualquer traço de sua existência.

João compreendeu que era tarde, o livro exterminado: seu faroeste brasileiro era um aborto. E a mulher de Botero já nem estava lá para que pudesse mirá-la com ódio."

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