DA NYTIMES
12/02/2010
Cartas de J.D. Salinger para um amigo revelam detalhes de sua vida
Alison Leigh Cowan
George El Khouri AndolfatoAs cartas, um total de 11, foram escritas entre 1951 e 1993, de um amigo, ou “Buddyroo” (chapa), para outro. Em uma prosa afiada e familiar, com toques de humor e sagacidade mordaz, o autor oferece um vislumbre íntimo de sua vida e pensamentos em momentos precisos do tempo. Lidas tantos anos depois, elas estão cheias de surpresas.
O autor das cartas –e daquele romance– foi J.D. Salinger.
Agora, duas semanas após a morte de Salinger aos 91 anos, as cartas se tornaram públicas. Elas provavelmente serão o primeiro lote de muitas correspondências semelhantes, dado o histórico de Salinger de escrever cartas, que virão à tona e aprofundarão –ou talvez alterarão– o entendimento por parte do público de uma das figuras literárias mais enigmáticas do século 20.
As cartas fornecem aquela que pode ser a descrição mais específica dos hábitos de trabalho de Salinger nos anos após 1965, quando ele parou de publicar. Mesmo nos anos 80, ele descreve um regime de trabalho altamente disciplinado, começando a cada manhã às 6h, nunca depois das 7h, e sem interrupções “a menos que fossem absolutamente necessárias ou convenientes”. O relato em suas próprias palavras pode reforçar a convicção de alguns e a esperança de outros de que ele tenha deixado obras adicionais.
As cartas para Mitchell também registram, como fotos instantâneas, como Salinger abraçou a alta vida que desfrutou como autor badalado –ceando com Laurence Olivier e Vivian Leigh na casa do casal em Londres, por exemplo– antes de se irritar com a cena social e partes de Nova York que ajudaram a moldar sua ficção.
As viagens para Nova York para encontrar amigos, comer com entusiasmo comida chinesa, procurar livros nas livrarias ou assistir espetáculos foram se tornando mais raras com o passar dos anos, segundo as cartas, apesar de Salinger ter reconhecido ainda apreciar o metrô até seus 60 e tantos anos.
A correspondência revela uma fascinação persistente pela cultura pop e pela política que contraria o meio século de mitologia popular de Salinger como um recluso excêntrico. Suas cartas são temperadas com referências aguçadas –às vezes aguçadas demais– a nomes conhecidos como John Wayne, Nancy Reagan e até mesmo Eddie Murphy.
Atualmente guardadas na Biblioteca e Museu Morgan em Manhattan, as cartas chegaram ao museu na forma de um presente, em uma caixa de documentos em meio a uma coleção muito maior de literatura americana do século 20, reunida por Carter Burden e doada ao museu em 1998, dois anos após a morte deste.
Os diretores do museu concordaram em manter o conteúdo das cartas em segredo, longe até mesmo de seus próprios funcionários, enquanto Salinger estivesse vivo, em uma abundância voluntária de cautela. Mas o sigilo autoimposto foi removido na semana passada e as cartas estão sendo preparadas para exposição.
O mundo literário está se preparando para esse momento. Apesar de sua mudança para New Hampshire em 1953, sua aversão à publicidade e seu afastamento da cena de Nova York, Salinger, como ele próprio admitiu, não conseguia resistir ao impulso de enviar cartas mal-humoradas para as pessoas que criticavam seu comportamento, cartas educadas para jovens estudantes que enviavam perguntas e cartas floreadas para as mulheres que chamavam sua atenção. Ele não mediu esforços para manter essas reflexões privadas não publicadas, combatendo um biógrafo com sucesso até a Suprema Corte dos Estados Unidos para exercer controle sobre o conteúdo delas.
As cartas para Morgan são particularmente saborosas. Mitchell, um ex-vizinho de Salinger em Westport, desenhou uma imagem como de sonho de um cavalo vermelho de carrossel para a capa do primeiro romance de Salinger, “O Apanhador no Campo de Centeio”, em 1951. Mais de uma vez em suas cartas, Salinger informa a Mitchell, que morreu no ano passado, que “nunca teve dois amigos mais queridos” do que ele e sua ex-esposa, Bet, uma amizade de “três pontas”.
As referências aos escritos de Salinger são provocantemente específicas. Uma carta de 1966 cita um acúmulo de “10, 12 anos de trabalho” que inclui “dois roteiros em particular –na verdade livros– que venho acumulando e selecionando há anos”.
A primeira carta do lote data de 22 de maio de 1951, semanas antes de “O Apanhador no Campo de Centeio” ser publicado. A carta abre como “Queridos Buddyroos” –um apelido que o herói do livro, Holden Caulfield, também utiliza. Ela fornece um relato da viagem de Salinger naquele mês a Londres, onde ele foi a sensação da cidade, desfrutando dos privilégios que acompanham um escritor sensação.
Ele compartilha seu divertimento diante da muito britânica oferta de chá que recebeu durante o intervalo em “O Lago dos Cisnes”. Ele conta sobre dois encontros com uma modelo da “Vogue” que conheceu na viagem. “Mas nenhuma diversão real”, ele relata. Uma noite no teatro terminou com ele sendo convidado para cear na elegante casa em Chelsea do casal que estrelava a peça: Laurence Olivier e Vivien Leigh.
“Naturalmente”, Salinger reconta com certo desconsolo, nos coquetéis “um pouco de gim subiu pelo meu nariz. Eu quase saí pela janela”.
Avançamos 15 anos até a próxima carta, que parece ter sido enviada em outubro de 1966. Muita coisa mudou naquele ínterim. Salinger se tornou um dos escritores mais procurados dos Estados Unidos. Ele se instalou em New Hampshire para escapar dos holofotes e aos poucos perdeu o interesse em ter suas obras publicadas. Ele se casou e se tornou pai. E, em setembro daquele ano, sua esposa, Claire, pediu o divórcio, declarando no processo que a continuidade do casamento “prejudicaria seriamente sua saúde e colocaria em risco sua razão”.
Naquela segunda carta, Salinger compartilha o prazer que sentiu ao levar seus dois filhos para Manhattan, principalmente para consultarem o dentista. Sua filha de 12 anos ficou empolgada ao saber que a suíte deles no Sherry-Netherland já tinha sido usada pelos Beatles. Os três jantaram e desfrutaram de uma caminhada pela Quinta Avenida após anoitecer.
Salinger conta aos seus amigos que adorava observar seus filhos dormindo –outra característica que compartilha com Holden– e que usava essas horas para escrever noite adentro.
Dois meses depois Salinger está de volta à máquina de escrever, agradecendo ao seu amigo por uma atualização que ele devorou “avidamente”. Desta vez, entretanto, ele relata que estava menos enamorado com os encantos de Nova York. “O que significa que não há mais lugares que goste ou ame lá. Com a exceção do Museu de História Natural.”
Apesar desse ser um lugar também apreciado por Holden, Salinger fantasia sobre uma visita a Williamsburg, Brooklyn, na “vã esperança de que algum velho hassídico gentil do século 18” o convidaria até sua casa para uma sopa de bolinhos de matzá ou uma xícara de chá.
Em agosto de 1979, seu interesse pela cidade tinha diminuído ainda mais. Ele discute o quanto aprecia as 30 horas que gasta em todo agosto cortando a grama de seus campos montado no “grande trator imbecil” e escreve que ele esteve em Nova York pela primeira vez em meses e odiou. Ele e uma acompanhante assistiram a uma apresentação de “Ain’t Misbehavin”. A melhor parte, ele relata, foi a viagem de metrô.
A correspondência retorna em 30 de dezembro de 1983, quando ele alerta asperamente que a Random House contratou um escritor britânico para escrever uma biografia dele. “Eu chorarei se eles incomodarem você e Bet”, ele escreve, descrevendo os pensamentos homicidas que aquilo provoca.
Dois anos depois ele pede desculpas ao “querido velho Mike” por suas falhas como amigo e pelos modos solitários que estão tão arraigados que ele nem mesmo lembrava de já ter atendido ao telefone “sem cerrar meus dentes inconscientemente”.
Não está claro por que Mitchell, dado seus laços óbvios com Salinger, se desfez das cartas, resultando na posterior venda delas para Burden. A última, postada em janeiro de 1993, sugere que a decisão pode ter derivado da recusa por Salinger de enviar ao seu amigo uma cópia autografada de “O Apanhador no Campo de Centeio”.
“A maioria das coisas que é genuína é melhor permanecer não dita”, escreveu em resposta Salinger, em uma nota que é mais breve do que as outras.