DA FOLHA DE SAO PAULO
Em "Invisível", Paul Auster mergulha nos anos 60 e desconcerta puritanismo
FABIO VICTOR
O incesto entre um jovem e sua irmã está no centro do enredo de "Invisível", novo romance de Paul Auster (Companhia das Letras).
Embora um dos pontos altos do livro, a relação pouco foi abordada pelos americanos, segundo o autor. "Acharam tão difícil que ignoraram", diz Auster, 63, em entrevista à Folha, na qual relata o constrangimento causado em estudantes de uma universidade do país pela leitura de um trecho com a descrição do caso amoroso.
A terra da liberdade, reino da indústria pornô, convive com o puritanismo porque, afirma ele, "somos um lugar dividido, um país esquizofrênico".
"Invisível" é o 15º romance de Auster. Depois de seguidas histórias sobre velhice, protagonizadas por moribundos, ele usa agora como argumento a memória juvenil de um universitário nos anos 60.
Companhia das Letras /Divulgação
Em "Invisível", 15º romance de Paul Auster, jovem envolve-se em trama de suspense que o leva a um fim trágico
A história de Adam Walker, estudante de letras atormentado entre o desejo pela irmã e pela mulher (Margot) de um professor com quem manterá uma relação doentia (Rudolf Born), se interpõe nas quatro partes dos livros. Em cada uma delas, Auster muda os narradores e tempos verbais e, seu brinquedo favorito, cria livros dentro do livro.
O escritor diz que lhe faz mal ler resenhas sobre suas obras, pois "raramente se consegue algo intermediário, é amor ou ódio". Com "Invisível", houve, entre a crítica de língua inglesa, mais amor do que ódio (o "New York Times" considerou seu melhor romance; na Inglaterra causou objeção e elogio).
O maniqueísmo que marca a crítica também domina hoje a política dos EUA, avalia. A oposição conservadora ao governo Obama, que o escritor apoia e elogia, gerou, segundo ele, um país "terrivelmente dividido".
Auster falou à Folha por telefone, de sua casa em Nova York.
*
Folha - Com este livro, que tem incesto e adultério consentido, você parece querer mostrar que o desejo sexual está acima de qualquer receio moral, é isso?
Paul Auster - Não diria isso. Há várias situações perigosas, cruéis... Não, não. Consentimento natural é uma coisa, mas há por aí várias pessoas com desejo sexual machucando outras, fazendo sexo com crianças...
Folha - Mas me refiro às passagens em que o personagem passa por cima dos seus medos para realizar desejos ditos proibidos...
Auster - Sim, nestes casos... Veja, Margot é uma adulta, ele também. Não há nada estranho no desejo que sentem um pelo outro. É muito mais obscuro e ambíguo no caso da irmã. Mas o livro é tão complexo que nem é mesmo certo de que isso aconteceu, pode ter sido uma fantasia. Mas, assumindo que aconteceu, ambos têm mais de 20 anos, consentem mutualmente em estabelecer essa ligação erótica. Não é uma questão de poder. O que me perturba, que acho doente e ilegal, é quando o desejo sexual se transforma em instrumento de poder de alguém sobre um outro --um pai que faz sexo com a filha pequena, uma pessoa obrigando a outra, a aprisionando. Walker não trata disso, mas em ambos os casos de amor verdadeiro, se expressando fisicamente.
Folha - Uma das subtramas do livro é a relação incestuosa entre irmãos. Como foi escrevê-la? E como foi a reação nos EUA?
Auster - Foi difícil de escrever, porque queria fazer algo honesto, verdadeiro, convincente sobre o prazer estético quando se está nos braços de alguém que ama, detalhes de intimidade física. É muito difícil de escrever. Seria muito diferente de ler se eu não tivesse escrito na segunda pessoa: você, você. Walker, de certo modo, se distancia dele mesmo, mas implica o leitor, que se sente envolvido. Você, como leitor, está vivendo o que Walker está sentindo.
A reação aqui... Eu não leio resenhas, então não posso dar uma resposta detalhada. Mas meu editor me diz o que escreveram. E de maneira geral, a crítica americana ignorou este assunto [risos]. Acharam tão difícil que ignoraram. Mencionaram, mas com muito poucos detalhes. [A resenha que está na página do "New York Times" menciona o incesto e as páginas "belas e perturbadoras" que tratam dele; na que está no site do "Washington Post" a relação não é citada].
Folha - Li que, durante uma leitura do livro numa universidade, ocorreu algo curioso a esse respeito...
Auster - Isso, foi muito interessante. Um ano atrás, antes de o livro ser publicado, eu e minha mulher fomos à Universidade Brown, em Rhode Island, e fizemos uma leitura conjunta. Li a parte da "grande experiência", quando eles tinham 14 e 15 anos [uma noite de beijos e carícias entre os irmãos]. No início alguns alunos deram risinhos nervosos, ao perceber o que acontecia. De repente todos ficaram calados. E, quando a leitura terminou, ninguém mencionou nada. Disseram "muito interessante", mas ninguém conseguiu falar nem perguntar nada.
Folha - É curioso, pois ao mesmo tempo os EUA são a terra da indústria pornô, da liberalidade.
Auster - Sim, é verdade, somos um lugar dividido, um país esquizofrênico. A pornografia é enorme e, ainda assim, o puritanismo continua.
Folha - O primeiro narrador do livro [Adam Walker] tem vários lapsos de memória, e a memória talvez seja o principal condutor do romance. Concorda com autores como Borges e Buñuel sobre a necessidade de esquecer?
Auster - A necessidade de esquecer... Isso é muito interessante. Bem, todos esquecemos. Estamos editando nossas vidas constantemente. Acho que se lembrarmos tudo nossa mente estará tão sobrecarregada com o passado que não conseguiremos viver o presente. Sei a história de Borges em que você está pensando [o conto "Funes, o Memorioso", sobre um homem que não consegue esquecer]. Mas devemos reter certas lembranças poderosas que são parte da nossa vida. Se não temos o passado dentro de nós, não poderemos viver, estaremos destruídos, pior do que os menores animais. Precisamos de memória física. Para saber como acender a luz, como sentar numa cadeira. Coisas simples, do contrário você estará no escuro, rastejando.
As memórias que tendemos a reter são as que têm mais significado emocional para nós. E coisas que não nos afetam profundamente tendemos a esquecer com o passar do tempo. O que é mais interessante é como costumamos distorcer memórias. Minha mulher, [a escritora] Siri [Hustvedt], que está muito envolvida com psiquiatria, psicanálise, neurologia, diz que, quando você lembra de algo, o que você está realmente lembrando é da última vez que lembrou daquilo. Ou seja, a memória é alterada ao longo dos anos. Interessante, não?
Folha - Depois de vários livros sobre a velhice, sobre moribundos, "Invisível" fala mais sobre a juventude (embora haja também uma pessoa à morte). Por quê?
Auster - Eu achei que [risos] não queria continuar a falar sobre homens se desintegrando. Além disso, esse livro foi de certa forma inspirado no fato de que, em 2006 e 2007, houve vários aniversários de 40 anos de eventos ocorridos nos anos 60, o que trouxe de volta este período para mim. E pensei: quero voltar, quero explorar 40 anos atrás. Foi o que houve. Mas quero escrever sobre tudo, jovens, velhos, pessoas de meia-idade. E crianças também.
Folha - Seu último livro, "Homem no Escuro", foi essencialmente político. Você deixou um pouco o tema em "Invisível", que traz histórias de amor, e ao que parece vai retomá-lo no próximo livro, "Sunset Park".
Auster - A política está presente em "Invisível", não há dúvida. O misterioso Rudolf Born ensina história francesa colonial, as guerras da Indochina e da Argélia são mencionadas, a Guerra do Vietnã tem uma forte presença. E o próprio Walker tem fortes convicções políticas, ele desiste de ser poeta para ser um advogado que atua em favor dos pobres.
Folha - Não digo que não haja política, mas não me parece que ela não seja "o" objeto do livro, como em "Homem no Escuro", uma obra contra a era Bush e sobre o trauma da Guerra no Iraque.
Auster - Também há uma relação muito complicada entre Walker e Born, é crucial para o livro, toda a terceira parte do livro fala de vingança, [Walker] tentando derrubar Born. Depois ele acaba conseguindo, mas não por seus esforços. Na quarta parte, uma espécie de epílogo do que ocorreu nas outras, você tem a explicação do que é o livro, por que ele existe, e termina com algo que em parte é desconectado, ainda que profundamente conectado com o resto. O diário de Cecile sobre a visita a Born na ilha caribenha... Há muitas coisas além de histórias de amor. São quatro livros em um.
Folha - Quis dizer que "Invisível" não é tão politicamente explícito como "Homem no Escuro".
Auster - Sim, realmente, ["Invisível"] aborda mais o interior dos personagens, mas mesmo em "Homem no Escuro" há uma guinada forte no terço final do livro. Brill [o protagonista], que está deitado na cama inventando a história, acaba a história. Ele busca algo novo para pensar, quando sua neta entra e ele fala de seu casamento com a avó dela, há intimidade, e a política fica de lado nesta parte final.
Folha - Embora você não leia resenhas, eu queria...
Auster - Eu me educo para não lê-las...
Folha - Pediria que comentasse trechos de duas: 1) "A prosa é o melhor da literatura americana contemporânea: fresca, elegante, alegre. É o melhor romance já escrito por Paul Auster" [publicada no "New York Times"]. 2) O romance está sempre piruetando em torno de totens culturais, e os personagens são desvendados pela lista de autores, compositores, pintores de que gostam. O resultado é que há algo irremediavelmente sobre a experiência da leitura --como ouvir um pós-graduado tentando impressionar calouras do primeiro ano. (...) Os diferentes pós-modernismos de Auster parecem estratégias de evasão. É assim que todo o livro parece: evasivo" [publicada no britânico "The Observer"].
Auster - É por isso que não leio essas coisas. Porque tenho quem ame o que faço e quem odeie o que faço. E não me faz nenhum bem lê-las. Obviamente discordo da segunda, que é britânica. Os britânicos são muito hostis com certo tipo de literatura moderna, são muito convencionais. E claro que discordo. Não há o que discutir nisso. A única coisa que se pode concluir é que opiniões são divididas, e raramente se consegue algo intermediário, é amor ou ódio.
Folha - Como em outras obras suas, "Invisível" está cheio de aforismos. Qual é o papel deste recurso em seu trabalho?
Auster - Ah, é uma pergunta engraçada, porque nunca pensei em mim mesmo como um escritor aforístico. Essas declarações simplesmente surgem de situações em que os personagens estão envolvidos e possivelmente condensam mais geral. Eu realmente não sei, realmente não sei. Mas nunca tinha pensado nisso.
*Folha - Por que seus romances não são adaptados para o cinema? [apenas um foi, "A Música do Acaso", nos anos 90]*
Auster - Não acho que meus livros são muito cinematográficos. Penso que são muito complicados para [virarem] filmes. Filmes, e tendo trabalhado com cinema [como roteirista e diretor] eu sei, se prestam mais a contos ou novelas curtas. Romances complexos raramente podem ser traduzidos em filmes. Por anos eu rejeitei qualquer oferta para fazerem filmes de meus livros. Por outro lado, recentemente desisti, porque alguns realizadores eram tão entusiasmados que me vi curioso para ver o que eles poderiam fazer. Agora há alguém escrevendo o roteiro de "Timbuktu". Não sei se o filme será realizado, não está claro. E há um jovem diretor belga interessado em transformar "Desvarios no Brooklyn" em filme. Vi um filme dele e achei excelente, e estou inclinado a deixá-lo tentar. Mas, de novo, o desejo de fazer um filme não significa que isso vá acontecer. A maior parte dos projetos naufraga.
Folha - Como define o seu próximo livro, "Sunset Park" [que sairá neste ano nos EUA]?
Auster - Oh, não sei. A primeira coisa é que é um livro muito intenso emocionalmente. Tem vários personagens, mais do que eu já tive em qualquer livro, com perspectivas múltiplas. O livro se passa no presente, começa no outono de 2008 e vai até a primavera de 2009.
Folha - Aborda a crise econômica destes dois anos, não?
Auster - Sim, a crise econômica está muito presente, particularmente no mercado imobiliário. O livro começa com um jovem de 28 anos que trabalha com lixo e sucata no sul da Flórida. E pessoas são contratadas pelos bancos para expulsar pessoas das casas que serão vendidas a outras pessoas. E essa pessoa acaba indo morar no Brooklyn num lugar chamado Sunset Park, numa casa abandonada, como squatter [sem-teto que invade imóveis desocupados], junto com três outros jovens. O livro é sobre a situação deles e seus pais e mães. São várias histórias familiares complicadas. Mas é muito, muito intenso.
Folha - Como democrata e eleitor de Obama, como analisa os primeiros passos do governo dele?
Auster - Oh, você está mexendo numa questão enorme. Tentarei ser muito breve. Sim, continuo apoiando Obama, o acho provavelmente um dos mais inteligentes e capazes homens que tivemos, certamente na minha época, como presidente. O problema é que o país está terrivelmente dividido. A facção anti-Obama é muito grande e barulhenta, falando e falando, atacando, atacando constantemente. Tem sido notável a serenidade que ele mantém, enquanto vai avançando com suas leis. A reforma do sistema de saúde foi um passo muito importante, acho que isso o salvou. Se tivesse perdido [no Congresso], estaria em dificuldade, mas agora ele experimenta um momentum e acho que logo veremos reformas financeiras também. É um momento muito, muito maluco nos EUA. Eu dificilmente lembro de algo semelhante, pelo menos desde a Guerra do Vietnã, em que o país tenha ficado tão dividido.
Folha - Já foi convidado para trabalhar no governo Obama?
Auster - [risos] Não, não.
Folha - Em tempos de Twitter, Facebook, de intimidades compartilhadas, de comunicação telegráfica, qual o papel do escritor, do romance e da literatura?
Auster - O mesmo de sempre, não há diferença para o que representavam 2.000 anos atrás. Livros, poesia, romances existem para capturar realidades e mistérios do mundo em que vivemos. Na minha cabeça, não há experiência mais íntima do que ler um romance. A beleza de um romance é que é o lugar onde dois estranhos se encontram, o leitor e o escritor. E eles têm uma experiência conjunta, muito, muito íntima. Não consigo pensar em outro lugar no mundo em que seja assim.
INVISÍVEL
Autor: Paul Auster
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47,50 (280 págs.)
Leia a seguir um trecho do livro.
"Um instante depois, você também põe seu copo sobre a mesa. Vocês dois se recostam no sofá, e Gwyn segura sua mão, entrelaçando os dedos com os seus. Pergunta: Está com medo? Você lhe diz que não, não está com medo, está extremamente feliz. Eu também, diz ela, e então lhe dá um beijo no rosto, com muita delicadeza, nada mais que um ligeiro toque, um levíssimo contato da boca na sua pele. Você entende que tudo deve caminhar lentamente, tudo deve se desenvolver com os incrementos mais sutis, que por um longo tempo será uma dança tateante, descontínua, de sim e não, e você prefere que seja assim, pois, se um dos dois mudar de ideia, haverá tempo para voltar atrás e cancelar tudo. Na maioria das vezes, aquilo que agita a imaginação fica mais bem guardado na imaginação, e Gwyn tem consciência disso, ela é sensata o bastante para saber que a distância entre o pensamento e os fatos pode ser enorme, um abismo do tamanho do próprio mundo. Assim vocês vão tateando o terreno com todo o cuidado, um passinho de bebê depois do outro, roçam a boca no pescoço um do outro, roçam os lábios nos lábios um do outro, mas durante vários minutos não abrem a boca, e, embora tenham fechado os braços em volta um do outro num abraço bem apertado, suas mãos não se mexem. Uma boa meia hora se passa, e nenhum dos dois demonstra a menor inclinação para parar. É aí que sua irmã abre a boca. É aí que você abre a boca, e juntos mergulham de cabeça na noite".
Em "Invisível", Paul Auster mergulha nos anos 60 e desconcerta puritanismo
FABIO VICTOR
O incesto entre um jovem e sua irmã está no centro do enredo de "Invisível", novo romance de Paul Auster (Companhia das Letras).
Embora um dos pontos altos do livro, a relação pouco foi abordada pelos americanos, segundo o autor. "Acharam tão difícil que ignoraram", diz Auster, 63, em entrevista à Folha, na qual relata o constrangimento causado em estudantes de uma universidade do país pela leitura de um trecho com a descrição do caso amoroso.
A terra da liberdade, reino da indústria pornô, convive com o puritanismo porque, afirma ele, "somos um lugar dividido, um país esquizofrênico".
"Invisível" é o 15º romance de Auster. Depois de seguidas histórias sobre velhice, protagonizadas por moribundos, ele usa agora como argumento a memória juvenil de um universitário nos anos 60.
Companhia das Letras /Divulgação
Em "Invisível", 15º romance de Paul Auster, jovem envolve-se em trama de suspense que o leva a um fim trágico
A história de Adam Walker, estudante de letras atormentado entre o desejo pela irmã e pela mulher (Margot) de um professor com quem manterá uma relação doentia (Rudolf Born), se interpõe nas quatro partes dos livros. Em cada uma delas, Auster muda os narradores e tempos verbais e, seu brinquedo favorito, cria livros dentro do livro.
O escritor diz que lhe faz mal ler resenhas sobre suas obras, pois "raramente se consegue algo intermediário, é amor ou ódio". Com "Invisível", houve, entre a crítica de língua inglesa, mais amor do que ódio (o "New York Times" considerou seu melhor romance; na Inglaterra causou objeção e elogio).
O maniqueísmo que marca a crítica também domina hoje a política dos EUA, avalia. A oposição conservadora ao governo Obama, que o escritor apoia e elogia, gerou, segundo ele, um país "terrivelmente dividido".
Auster falou à Folha por telefone, de sua casa em Nova York.
*
Folha - Com este livro, que tem incesto e adultério consentido, você parece querer mostrar que o desejo sexual está acima de qualquer receio moral, é isso?
Paul Auster - Não diria isso. Há várias situações perigosas, cruéis... Não, não. Consentimento natural é uma coisa, mas há por aí várias pessoas com desejo sexual machucando outras, fazendo sexo com crianças...
Folha - Mas me refiro às passagens em que o personagem passa por cima dos seus medos para realizar desejos ditos proibidos...
Auster - Sim, nestes casos... Veja, Margot é uma adulta, ele também. Não há nada estranho no desejo que sentem um pelo outro. É muito mais obscuro e ambíguo no caso da irmã. Mas o livro é tão complexo que nem é mesmo certo de que isso aconteceu, pode ter sido uma fantasia. Mas, assumindo que aconteceu, ambos têm mais de 20 anos, consentem mutualmente em estabelecer essa ligação erótica. Não é uma questão de poder. O que me perturba, que acho doente e ilegal, é quando o desejo sexual se transforma em instrumento de poder de alguém sobre um outro --um pai que faz sexo com a filha pequena, uma pessoa obrigando a outra, a aprisionando. Walker não trata disso, mas em ambos os casos de amor verdadeiro, se expressando fisicamente.
Folha - Uma das subtramas do livro é a relação incestuosa entre irmãos. Como foi escrevê-la? E como foi a reação nos EUA?
Auster - Foi difícil de escrever, porque queria fazer algo honesto, verdadeiro, convincente sobre o prazer estético quando se está nos braços de alguém que ama, detalhes de intimidade física. É muito difícil de escrever. Seria muito diferente de ler se eu não tivesse escrito na segunda pessoa: você, você. Walker, de certo modo, se distancia dele mesmo, mas implica o leitor, que se sente envolvido. Você, como leitor, está vivendo o que Walker está sentindo.
A reação aqui... Eu não leio resenhas, então não posso dar uma resposta detalhada. Mas meu editor me diz o que escreveram. E de maneira geral, a crítica americana ignorou este assunto [risos]. Acharam tão difícil que ignoraram. Mencionaram, mas com muito poucos detalhes. [A resenha que está na página do "New York Times" menciona o incesto e as páginas "belas e perturbadoras" que tratam dele; na que está no site do "Washington Post" a relação não é citada].
Folha - Li que, durante uma leitura do livro numa universidade, ocorreu algo curioso a esse respeito...
Auster - Isso, foi muito interessante. Um ano atrás, antes de o livro ser publicado, eu e minha mulher fomos à Universidade Brown, em Rhode Island, e fizemos uma leitura conjunta. Li a parte da "grande experiência", quando eles tinham 14 e 15 anos [uma noite de beijos e carícias entre os irmãos]. No início alguns alunos deram risinhos nervosos, ao perceber o que acontecia. De repente todos ficaram calados. E, quando a leitura terminou, ninguém mencionou nada. Disseram "muito interessante", mas ninguém conseguiu falar nem perguntar nada.
Folha - É curioso, pois ao mesmo tempo os EUA são a terra da indústria pornô, da liberalidade.
Auster - Sim, é verdade, somos um lugar dividido, um país esquizofrênico. A pornografia é enorme e, ainda assim, o puritanismo continua.
Folha - O primeiro narrador do livro [Adam Walker] tem vários lapsos de memória, e a memória talvez seja o principal condutor do romance. Concorda com autores como Borges e Buñuel sobre a necessidade de esquecer?
Auster - A necessidade de esquecer... Isso é muito interessante. Bem, todos esquecemos. Estamos editando nossas vidas constantemente. Acho que se lembrarmos tudo nossa mente estará tão sobrecarregada com o passado que não conseguiremos viver o presente. Sei a história de Borges em que você está pensando [o conto "Funes, o Memorioso", sobre um homem que não consegue esquecer]. Mas devemos reter certas lembranças poderosas que são parte da nossa vida. Se não temos o passado dentro de nós, não poderemos viver, estaremos destruídos, pior do que os menores animais. Precisamos de memória física. Para saber como acender a luz, como sentar numa cadeira. Coisas simples, do contrário você estará no escuro, rastejando.
As memórias que tendemos a reter são as que têm mais significado emocional para nós. E coisas que não nos afetam profundamente tendemos a esquecer com o passar do tempo. O que é mais interessante é como costumamos distorcer memórias. Minha mulher, [a escritora] Siri [Hustvedt], que está muito envolvida com psiquiatria, psicanálise, neurologia, diz que, quando você lembra de algo, o que você está realmente lembrando é da última vez que lembrou daquilo. Ou seja, a memória é alterada ao longo dos anos. Interessante, não?
Folha - Depois de vários livros sobre a velhice, sobre moribundos, "Invisível" fala mais sobre a juventude (embora haja também uma pessoa à morte). Por quê?
Auster - Eu achei que [risos] não queria continuar a falar sobre homens se desintegrando. Além disso, esse livro foi de certa forma inspirado no fato de que, em 2006 e 2007, houve vários aniversários de 40 anos de eventos ocorridos nos anos 60, o que trouxe de volta este período para mim. E pensei: quero voltar, quero explorar 40 anos atrás. Foi o que houve. Mas quero escrever sobre tudo, jovens, velhos, pessoas de meia-idade. E crianças também.
Folha - Seu último livro, "Homem no Escuro", foi essencialmente político. Você deixou um pouco o tema em "Invisível", que traz histórias de amor, e ao que parece vai retomá-lo no próximo livro, "Sunset Park".
Auster - A política está presente em "Invisível", não há dúvida. O misterioso Rudolf Born ensina história francesa colonial, as guerras da Indochina e da Argélia são mencionadas, a Guerra do Vietnã tem uma forte presença. E o próprio Walker tem fortes convicções políticas, ele desiste de ser poeta para ser um advogado que atua em favor dos pobres.
Folha - Não digo que não haja política, mas não me parece que ela não seja "o" objeto do livro, como em "Homem no Escuro", uma obra contra a era Bush e sobre o trauma da Guerra no Iraque.
Auster - Também há uma relação muito complicada entre Walker e Born, é crucial para o livro, toda a terceira parte do livro fala de vingança, [Walker] tentando derrubar Born. Depois ele acaba conseguindo, mas não por seus esforços. Na quarta parte, uma espécie de epílogo do que ocorreu nas outras, você tem a explicação do que é o livro, por que ele existe, e termina com algo que em parte é desconectado, ainda que profundamente conectado com o resto. O diário de Cecile sobre a visita a Born na ilha caribenha... Há muitas coisas além de histórias de amor. São quatro livros em um.
Folha - Quis dizer que "Invisível" não é tão politicamente explícito como "Homem no Escuro".
Auster - Sim, realmente, ["Invisível"] aborda mais o interior dos personagens, mas mesmo em "Homem no Escuro" há uma guinada forte no terço final do livro. Brill [o protagonista], que está deitado na cama inventando a história, acaba a história. Ele busca algo novo para pensar, quando sua neta entra e ele fala de seu casamento com a avó dela, há intimidade, e a política fica de lado nesta parte final.
Folha - Embora você não leia resenhas, eu queria...
Auster - Eu me educo para não lê-las...
Folha - Pediria que comentasse trechos de duas: 1) "A prosa é o melhor da literatura americana contemporânea: fresca, elegante, alegre. É o melhor romance já escrito por Paul Auster" [publicada no "New York Times"]. 2) O romance está sempre piruetando em torno de totens culturais, e os personagens são desvendados pela lista de autores, compositores, pintores de que gostam. O resultado é que há algo irremediavelmente sobre a experiência da leitura --como ouvir um pós-graduado tentando impressionar calouras do primeiro ano. (...) Os diferentes pós-modernismos de Auster parecem estratégias de evasão. É assim que todo o livro parece: evasivo" [publicada no britânico "The Observer"].
Auster - É por isso que não leio essas coisas. Porque tenho quem ame o que faço e quem odeie o que faço. E não me faz nenhum bem lê-las. Obviamente discordo da segunda, que é britânica. Os britânicos são muito hostis com certo tipo de literatura moderna, são muito convencionais. E claro que discordo. Não há o que discutir nisso. A única coisa que se pode concluir é que opiniões são divididas, e raramente se consegue algo intermediário, é amor ou ódio.
Folha - Como em outras obras suas, "Invisível" está cheio de aforismos. Qual é o papel deste recurso em seu trabalho?
Auster - Ah, é uma pergunta engraçada, porque nunca pensei em mim mesmo como um escritor aforístico. Essas declarações simplesmente surgem de situações em que os personagens estão envolvidos e possivelmente condensam mais geral. Eu realmente não sei, realmente não sei. Mas nunca tinha pensado nisso.
*Folha - Por que seus romances não são adaptados para o cinema? [apenas um foi, "A Música do Acaso", nos anos 90]*
Auster - Não acho que meus livros são muito cinematográficos. Penso que são muito complicados para [virarem] filmes. Filmes, e tendo trabalhado com cinema [como roteirista e diretor] eu sei, se prestam mais a contos ou novelas curtas. Romances complexos raramente podem ser traduzidos em filmes. Por anos eu rejeitei qualquer oferta para fazerem filmes de meus livros. Por outro lado, recentemente desisti, porque alguns realizadores eram tão entusiasmados que me vi curioso para ver o que eles poderiam fazer. Agora há alguém escrevendo o roteiro de "Timbuktu". Não sei se o filme será realizado, não está claro. E há um jovem diretor belga interessado em transformar "Desvarios no Brooklyn" em filme. Vi um filme dele e achei excelente, e estou inclinado a deixá-lo tentar. Mas, de novo, o desejo de fazer um filme não significa que isso vá acontecer. A maior parte dos projetos naufraga.
Folha - Como define o seu próximo livro, "Sunset Park" [que sairá neste ano nos EUA]?
Auster - Oh, não sei. A primeira coisa é que é um livro muito intenso emocionalmente. Tem vários personagens, mais do que eu já tive em qualquer livro, com perspectivas múltiplas. O livro se passa no presente, começa no outono de 2008 e vai até a primavera de 2009.
Folha - Aborda a crise econômica destes dois anos, não?
Auster - Sim, a crise econômica está muito presente, particularmente no mercado imobiliário. O livro começa com um jovem de 28 anos que trabalha com lixo e sucata no sul da Flórida. E pessoas são contratadas pelos bancos para expulsar pessoas das casas que serão vendidas a outras pessoas. E essa pessoa acaba indo morar no Brooklyn num lugar chamado Sunset Park, numa casa abandonada, como squatter [sem-teto que invade imóveis desocupados], junto com três outros jovens. O livro é sobre a situação deles e seus pais e mães. São várias histórias familiares complicadas. Mas é muito, muito intenso.
Folha - Como democrata e eleitor de Obama, como analisa os primeiros passos do governo dele?
Auster - Oh, você está mexendo numa questão enorme. Tentarei ser muito breve. Sim, continuo apoiando Obama, o acho provavelmente um dos mais inteligentes e capazes homens que tivemos, certamente na minha época, como presidente. O problema é que o país está terrivelmente dividido. A facção anti-Obama é muito grande e barulhenta, falando e falando, atacando, atacando constantemente. Tem sido notável a serenidade que ele mantém, enquanto vai avançando com suas leis. A reforma do sistema de saúde foi um passo muito importante, acho que isso o salvou. Se tivesse perdido [no Congresso], estaria em dificuldade, mas agora ele experimenta um momentum e acho que logo veremos reformas financeiras também. É um momento muito, muito maluco nos EUA. Eu dificilmente lembro de algo semelhante, pelo menos desde a Guerra do Vietnã, em que o país tenha ficado tão dividido.
Folha - Já foi convidado para trabalhar no governo Obama?
Auster - [risos] Não, não.
Folha - Em tempos de Twitter, Facebook, de intimidades compartilhadas, de comunicação telegráfica, qual o papel do escritor, do romance e da literatura?
Auster - O mesmo de sempre, não há diferença para o que representavam 2.000 anos atrás. Livros, poesia, romances existem para capturar realidades e mistérios do mundo em que vivemos. Na minha cabeça, não há experiência mais íntima do que ler um romance. A beleza de um romance é que é o lugar onde dois estranhos se encontram, o leitor e o escritor. E eles têm uma experiência conjunta, muito, muito íntima. Não consigo pensar em outro lugar no mundo em que seja assim.
INVISÍVEL
Autor: Paul Auster
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47,50 (280 págs.)
Leia a seguir um trecho do livro.
"Um instante depois, você também põe seu copo sobre a mesa. Vocês dois se recostam no sofá, e Gwyn segura sua mão, entrelaçando os dedos com os seus. Pergunta: Está com medo? Você lhe diz que não, não está com medo, está extremamente feliz. Eu também, diz ela, e então lhe dá um beijo no rosto, com muita delicadeza, nada mais que um ligeiro toque, um levíssimo contato da boca na sua pele. Você entende que tudo deve caminhar lentamente, tudo deve se desenvolver com os incrementos mais sutis, que por um longo tempo será uma dança tateante, descontínua, de sim e não, e você prefere que seja assim, pois, se um dos dois mudar de ideia, haverá tempo para voltar atrás e cancelar tudo. Na maioria das vezes, aquilo que agita a imaginação fica mais bem guardado na imaginação, e Gwyn tem consciência disso, ela é sensata o bastante para saber que a distância entre o pensamento e os fatos pode ser enorme, um abismo do tamanho do próprio mundo. Assim vocês vão tateando o terreno com todo o cuidado, um passinho de bebê depois do outro, roçam a boca no pescoço um do outro, roçam os lábios nos lábios um do outro, mas durante vários minutos não abrem a boca, e, embora tenham fechado os braços em volta um do outro num abraço bem apertado, suas mãos não se mexem. Uma boa meia hora se passa, e nenhum dos dois demonstra a menor inclinação para parar. É aí que sua irmã abre a boca. É aí que você abre a boca, e juntos mergulham de cabeça na noite".
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